“Tinha estado em Chaves, por causa de um encontro de escritores, malta portuguesa e da Galiza. E ficou fascinado com o personagem. Fez fortuna no Brasil, lançou alicerces de uma parte importante da Banca portuguesa e, entre muitas outras coisas, mandou construir este jardim, que faz do bairro da Madalena um dos pontos mais importantes de Chaves. O Pedro até descobriu quanto é que o tipo pagou pelo jardim: 18 contos de reis! Certo dia, o historiador deparou-se com um conjunto de cartas do seu avô em que se falava sobre o cronóxido. E começou uma obsessiva investigação, que o fez ler muito e desvendar ligações que poderiam parecer fantasiosas aos mais ingénuos. ‘Se o aço é moldado pelo fogo, a água é ingerida graças ao ar’, lera num texto pouco divulgado de Paracelso. Nada mais certo, anuiu. Quando soube da insistência do senhor Cândido em comprar o aço dos portões do jardim nos ferreiros locais, junto ao actual Largo de São Roque, seguiu essa pista. E não se enganou. Descobriu como o nome do estabelecimento lhe fora recomendado por alguém que conhecera anos antes, no Brasil, «uma estranha figura de barba aparada e olhar cortante», nas palavras que Herculano Marcos Inglês de Sousa deixou numa das suas cartas, herdadas pelo sobrinho, Oswald de Andrade, que não era outro senão o autor do Manifesto Antropófago, o texto que consolidou o Modernismo na literatura brasileira. Os despojos da franca actividade epistolográfica são a sombra de um tempo em que a memória dependia da sua partilha, a caligrafia atestava a identidade e a intenção, a escolha da tinta ou do papel certificavam circunstâncias ou contingências, e o invólucro ajudava a datar e acomodar as ideias. Sim, as palavras eram ideias, e não sons, acima de tudo.”

João Morales

 

Colectânea resultante da segunda edição do festival literário flaviense Ponte Escrita – Encontro Luso-Galaico de Escritores, com contos de Ana Cristina Silva, André Gago, António Mota, Ernesto Salgado Areias, Fausta Cardoso Pereira, Fernando Pinto do Amaral, Fran Alonso, Inês Botelho, João Morales, José Leon Machado, Margarida Fonseca Santos, Maria de Lourdes Soares, Possidónio Cachapa, Rosalía Fernández Rial, e Rui Sousa.

“Ouve”

Há gente que nos fica desde a infância, e lugares que se tornam uma vida.

“Ouve” teve uma segunda publicação no número de Novembro de 2021 da revista online InComunidade.